O menino curioso e travesso que virou referência mundial sobre a Amazônia

A trajetória do biólogo paraense José Márcio Ayres mostra como a ciência pode mudar a vida de pequenos estudantes - e do mundo que os cerca


Agência Museu Goeldi – Estudantes do Pará já se mobilizam para participar da quarta edição do Prêmio José Márcio Ayres para Jovens Naturalistas. O novo desafio de pesquisar a biodiversidade amazônica foi lançado nesta quinta-feira, dia 17/04, pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e pela organização ambientalista Conservação Internacional (CI) - com inscrições abertas até 19 de setembro de 2008 (ver informações completas aqui). Porém, o material de divulgação do concurso este ano provoca a curiosidade de quem o vê. Quem é o menino arrumado com ar maroto que ilustra o cartaz? Trata-se de Márcio Ayres aos 12 anos, quando resolutamente já anunciava que seria um "estudioso de macacos".

A trajetória do primatólogo, nascido em Belém no ano de 1954 e falecido em Nova York em 2003, vitimado por um câncer, resume o espírito do concurso do MPEG e da CI, que incentiva um contato mais profundo de crianças e adolescentes com a ciência, a Amazônia e a diversidade de espécies. Biólogo e especialista em primatas, reconhecido internacionalmente nos anos 80 e 90 por seus estudos sobre as espécies amazônicas e os esforços na área da conservação da biodiversidade na Amazônia, José Márcio Ayres foi o responsável direto pela criação da primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Brasil – Mamirauá, localizada no Estado do Amazonas. Uma inovação no estabelecimento de unidades de conservação no País ao incorporar a participação e as atividades de populações tradicionais residentes, a RDS tornou-se modelo para diversas outras experiências espalhadas pelo Brasil.

Mamirauá foi criada oficialmente em 1990, nas matas de várzea do rio que tem o mesmo nome, no norte do Estado do Amazonas. A luta de Ayres começou em 1985 quando pediu ao Estado a criação de uma área de proteção para o macaco Uacari-branco (Cacajao calvus), espécie que ele havia encontrado naquela região, no início dos anos 80, e que se acreditava extinta desde o século XIX.

O sucesso de Mamirauá motivou o Governo do Estado do Amazonas a acatar um novo pedido de Ayres, criando em 1998 a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Amaná. As duas reservas, em conjunto com o vizinho Parque Nacional do Jaú, somam mais de 3 milhões de hectares e formam a maior porção contínua de floresta tropical protegida do mundo.

Um menino brincalhão e curioso

O que levou um menino brincalhão e curioso a se tornar um grande cientista? Quem podia prever que ao crescer aquele pequenino iria ajudar a salvar um bicho que corria o perigo de desaparecer para sempre da Terra e junto com ele proteger uma larga porção da Amazônia? As histórias saborosas de José Márcio Ayres começaram cedo, na sua infância e adolescência, quando uma insaciável curiosidade pelo mundo conduzia-o para os livros, brincadeiras e molecagens.

Reza a lenda que o filho de Iza e do doutor Manuel Ayres - médico que largou a pediatria para mergulhar apaixonadamente na pesquisa em genética - começou a gostar de macacos ainda muito menino. Esta história foi contada pela revista Veja em 1999, em uma reportagem especial sobre José Márcio Ayres ("A força do senhor dos macacos"), assinada pelo jornalista Klester Cavalcanti e o fotógrafo Luiz Claudio Marigo. Segundo a revista, o fascínio pelos primatas tomou conta de Márcio Ayres aos 6 anos de idade, após um marcante encontro com um macaco-de-cheiro que pulava de galho em galho nas árvores da fazenda da avó, no município de Juruti, no Pará. "Àquela pergunta que os adultos adoram fazer às crianças – "O que você vai ser quando crescer?" – ele passou a responder: "Estudioso de macacos". A família ria, achava uma criancice", reportou a revista.

"Não me lembro se isso aconteceu assim, mas Márcio era realmente uma daquelas crianças que a gente queria expulsar do lado (risos). Ele vivia perguntando sobre tudo: por que? Por que? Por que? Por que?", conta sua prima, a antropóloga Ana Rita Alves, parceira de Márcio na consolidação de Mamirauá e sua atual dirigente. Nas décadas de 50 e 60, Márcio conviveu com a família de Ana Rita em Óbidos e Santarém, onde freqüentemente passava as férias com os tios. Depois, em Belém, Ana Rita presenciou a passagem de Márcio Ayres da adolescência para a maturidade.

Dessa época, Rita lembra de um primo brincalhão, faminto por livros e curioso por fotografia, cinema e música. "Ele tinha um estúdio em casa. Fazia fotos. Gostava de Jovem Guarda, jazz, MPB e do Elvis Presley. Tinha até uma coleção do cantor", conta.
"Márcio vinha à biblioteca do Museu Goeldi. Via aqueles livros antigos e já achava que eles estavam incompletos, que precisavam de mais coisas. Quando entrou na faculdade, lá pelos 17, estudava muito e fazia perguntas difíceis aos professores, para saber se eles sabiam mesmo", ri a prima.

Curioso, arteiro, brincalhão e detalhista, Márcio Ayres gostava de provocar as pessoas e ver como reagiam. Era assim quando, trajado com uma máscara e paletó, ia para a calçada do cemitério Santa Isabel dar susto em desavisados. Ou quando, de dentro da casa da família, na Rua Presidente Pernambuco, no Largo da Trindade, projetava nas paredes externas dos vizinhos as imagens de filmes eróticos. Ou mesmo quando simulava ser um "repórter da rádio PRC-5" e entrevistava romeiros do Círio de Nazaré por minutos, munido de um walkie talkie. "Geralmente isso acabava com as pessoas correndo atrás do Márcio. Ele era um grande curioso. Na verdade, ele gostava é de saber como as coisas funcionavam, ver os processos", lembra Ana Rita.

Companheirismo e ciência

"Márcio era muito divertido, moleque, e uma pessoa muito próxima dos amigos", conta, por sua vez, a pesquisadora do Museu Goeldi, Marlúcia Martins, zoóloga, especialista em moscas, que foi colega de Ayres na pós-graduação realizada pelo INPA, em Manaus, na década de 80. "Estávamos no mestrado e Márcio já tinha seu trabalho pronto! Depois do Bacharelado em Ciências Biológicas pela Universidade de Ribeirão Preto [UNAERP], tinha passado dois anos na região do Rio Aripuanã [MT], fazendo observações de campo do cuxiú-de-nariz-branco. Passou um ano e meio conosco, só para fazer as disciplinas".

Em julho de 1980, quando Marlúcia e outras duas colegas se perderam na mata em uma viagem de campo, os amigos tiveram uma mostra do lado companheiro do colega fanfarrão. "O restante do grupo iria sair cedo para nos procurar. Mas, como Márcio tinha muita experiência, resolveu sair antes, sozinho, às quatro da manhã. Nós acabamos sendo achadas depois e conseguimos retornar ao meio-dia. Márcio não sabia, continuou nos procurando e só voltou às quatro da tarde...".

Como bem pontua Marlúcia, é essa garra extrema de Márcio Ayres que marcou tudo o que fez com relação à pesquisa científica e à preservação da diversidade de espécies na Amazônia. Além de prêmios ambientais e reconhecimento internacional por Mamirauá e pelo Uacari-branco, descobriu duas novas espécies de macacos – o capijuba-de-boné e o sagüi-de-maués –, publicou quatro livros, 32 artigos em periódicos e outros 10 capítulos de livros voltados para a zoologia e para a socioecologia, a anatomia, a ecologia e o estudo do comportamento de primatas - divididos entre interesses como a conservação e o uso sustentável das várzeas brasileiras.

"Após um mês em Aripuanã, Márcio já tinha descoberto vários bandos de macacos e queria estudar seu deslocamento. Ele trabalhava intensamente: fazia descobertas diárias, encantando os colegas do INPA e os visitantes estrangeiros. Ele era meu melhor cientista", já afirmou o pesquisador Warwick Estevam Kerr, professor de genética da Universidade Federal de Uberlândia e ex-diretor do INPA, em artigo publicado na ocasião da morte de Márcio Ayres, em 2003. Para Kerr, que acompanhou muito de perto o início da carreira do paraense, a colaboração que posteriormente Ayres manteve entre Mamirauá e diversas instituições de conhecimento na região foi de enorme importância para o aumento do conhecimento científico sobre a Amazônia. "Seu falecimento privou a ciência brasileira de um grande cientista".

"Ao lado do Márcio Ayres, tive na Amazônia uma das maiores emoções na vida", resumiu mês passado, em entrevista dada à Folha de São Paulo, o zoólogo e compositor Paulo Emílio Vanzolini, 84, que foi orientador do trabalho de mestrado sobre o cuxiú-de-nariz-branco que levou Ayres a esbarrar com o Uacari-branco e com outras espécies novas de primatas em Mamirauá.

"Logo quando chegamos [a Mamirauá] pensaram que nós éramos regatões e foram logo perguntando o que vendíamos", conta Vanzolini. "Dissemos que estávamos trabalhando nessa coisa do mico-de-cheiro. Perguntaram qual queríamos: o da cabecinha ruiva ou o outro? Quase desmaiei na hora. Eles já sabiam que eram dois tipos", narra ainda Vanzolini, que é um dos autores do estudo de 1970 que se popularizou como a Teoria dos Refúgios. Esses refúgios seriam os nomes dados às ilhas de mata úmida e cerrado que se formaram na Amazônia à medida que o clima oscilava entre seco e úmido desde a Era do Gelo. Acredita-se que elas isolaram geograficamente populações e estimularam o surgimento de novas espécies - o que explicaria a atual biodiversidade amazônica.

Exemplo de luta pela preservação

"Muito se sabe sobre a contribuição do Márcio enquanto pesquisador, mas é na conservação que ele virou um grande exemplo para os que vieram depois. Ele tinha uma visão muito voltada para o futuro", ressalta a colega Marlúcia Martins. "Éramos uma turma muito ativa e tínhamos uma postura muito clara sobre as políticas de conservação. Fazer apenas ciência, muita gente faz. O Márcio foi uma dessas pessoas que conseguiram ir além. Ele concretizou idéias, colocando o conhecimento a serviço disso", enfatiza Marlúcia Martins.
Se referindo a esse papel de visionário e também de grande mediador dos mais diversos atores sociais – das populações tradicionais às instituições internacionais – em torno de suas causas, a matéria especial da revista Veja, publicada quatro anos antes de sua morte, estimava que José Márcio Ayres tinha percorrido nada menos que 40 países, nos vários continentes, explicando, defendendo e angariando verbas para a preservação da Amazônia.

O Uacari-branco, primata de rosto vermelho e corpo coberto de pêlos brancos, seu grande objeto de estudo no doutorado em Cambridge (Inglaterra), foi o ponto de partida para um sonho concretizado. Ao retornar de Mamirauá, Ayres estava determinado em garantir a preservação da região, para evitar a destruição da sua extraordinária biodiversidade, o que significaria a extinção do Uacari-branco.

De lá para cá, a reserva de Mamirauá, criada sete anos após os primeiros contatos entre Ayres e o Uacari, já registrou visitantes ilustres como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o empresário Bill Gates e o músico Peter Gabriel. Mas nada disso importa realmente. Fato é que com a criação da reserva, a ciência ganhou um laboratório de 11,2 mil quilômetros quadrados disponíveis para praticar idéias inovadoras sobre preservação ambiental. Ao seu modo, aquele menino curioso, mais tarde adolescente brincalhão e atrevido, contribuiu decisivamente para a ciência e para grandes avanços no cenário das políticas nacionais de conservação.

Da mesma forma curiosa que em uma semente está contida toda a árvore, estava guardado em um pequenino Márcio Ayres, assim como em centenas de meninos e meninas espalhados pelos mais diversos recantos do Brasil, tudo o que há de mais valioso: a vontade de descobrir tudo o que for possível sobre a vida e sobre o lugar que nos cerca, e também sobre como as coisas se relacionam com as outras, para garantir esse fantástico – e frágil - equilíbrio existente sobre a Terra.

Texto: Lázaro Magalhães

Uma vida para o saber


Confira os principais fatos que marcaram a vida do pesquisador José Márcio Ayres

1954 – José Márcio Corrêa Ayres nasce em Belém (PA).
1973 – Entra para o Bacharelado em Ciências Biológicas pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP, SP).
1974 – Inicia sua atuação como colaborador Jardim Zoológico de Ribeirão Preto, JZRP, Brasil, onde fica até 1975.
1976 - Gradua-se e parte para a região do Rio Aripuanã (MT), onde passa dois anos estudando o cuxiú-de-nariz-branco.
1978 – Recebe o Diploma de Honra e Mérito do Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia (Inpa), de Manaus.
1979 – Entra para o mestrado em Socioecologia de Primatas, pela Universidade de São Paulo. Conclui o curso em 1981, com o trabalho "Observation on the Ecology and Behaviour of the White-nosed Sakis in the Amazon", orientado por Paulo Vanzolini.
1981 – Publica o livro "Observações sobre a ecologia e comportamento dos cuxiús (Chiropotes albinasus & Chiropotes satanas, Cebidae: Primates)".
1982 – Parte para o doutorado em socioecologia de primatas pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde concluirá em 1986 o trabalho "The White Uakaris and the Amazonian Flooded Forests", sob orientação de Robert Martin.
1985 - José Márcio Ayres encaminha ao governo do Estado do Amazonas proposta de criação de uma área de proteção para o Uacari-branco (Cacajao calvus calvus) em Mamirauá.
1986 – É contratado como cientista senior e pesquisador do Departamento de Zoologia do Museu Goeldi, onde atuou nas áreas de ecologia e comportamento de primatas
1988 – Atua como professor visitante do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará, UFPA, até 1996.
1989 – Inicia seu pós-doutorado na Universidade de Cambridge, onde passou a ser também pesquisador ligado ao departamento de Anatomia, até 1990. Publica o livro "Biologia e ecologia de primatas amazônicos: avaliação e perspectivas", com Eduardo de Souza Martins.
1990 – O Estado do Amazonas cria oficialmente a Reserva Ecológica Mamirauá. Ayres passa a ser pesquisador associado à Wildlife Conservation International, WCI, até 1991.
1991 – Inicia o Plano de Manejo de Mamirauá (até 1996). Ayres passa a ser membro associado da Academia Brasileira de Ciências. Passa a atuar como Diretor de Ecossistemas, na Agência Ambiental Nacional de Brasília, ligada ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, IBAMA (até 1992).
1992 – Torna-se professor visitante da New York Consortium For Evolutionary Primatology, NYCEP (EUA). Dá aulas para graduação, na disciplina Evolutionary Primatology. Ayres recebe a Medalha de Ouro do World Wide Fund for Nature.
1995 - Publica o livro "As Matas de Várzea do Mamirauá". Recebe a Medalha Augusto Ruschi, da Academia Brasileira de Ciências.
1996 – Ayres torna-se presidente da Ordem Nacional do Mérito Científico do Brasil.
1998 - O governo do Amazonas cria a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, acatando outro pedido de Ayres.
1999 – José Márcio Ayres torna-se Diretor do Instituto Mamirauá de Desenvolvimento Sustentável (IMDS).
1999 – Publica o livro "Varzea, Diversity, Development, and Conservation of Amazonia's floodplains", com Padoch, Vasquez e Henderson.
2003 – Falece em 7 de março de 2003, aos 49 anos, ainda na direção do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que ajudou a criar.

 

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